Apontamentos sobre a legislação colonial e imperial voltada ao tratamento das terras ocupadas pelos índios no Brasil

Apontamentos sobre a legislação colonial e imperial voltada ao tratamento das terras ocupadas pelos índios no Brasil

Por Rodrigo Sérgio Meirelles Marchini 18/10/2012

Introdução

Este texto tem objetivos meramente introdutórios para o estudioso da legislação voltada aos índios, mais especificamente em relação à questão da propriedade fundiária das terras ocupadas pelos nativos das terras brasileiras.

Dessa forma, apresentaremos de forma geral os principais diplomas do período colonial e imperial visando facilitar os estudos no tema para que se possa ter um ponto de partida para análises mais aprofundadas e específicas.

Este trabalho foi originalmente realizado para fundamentar a nossa dissertação de mestrado: "A proteção constitucional das terras indígenas brasileiras no período republicano: evolução e estagnação".

Além desse objetivo descritivo queremos destacar dentre as diversas características e observações que se podem fazer sobre esta legislação o caráter de sua dualidade, o que perpassa o período colonial e imperial e chega até a atualidade.

Essa dualidade consiste em haver duas formas de tratamento jurídico em relação aos índios que ocorrem simultaneamente no tempo. De fato, se acompanharmos a sequência cronológica dos dispositivos pode-se acreditar que ela seja contraditória e não demonstre uma progressão lógica de um sistema de organização, mas a busca pela racionalidade que parecia faltar nos levou a concordar com o entendimento da professora Beatriz Perrone-Moisés no artigo "Índios livres e índios escravos – Os princípios da legislação indigenista do período colonial (século XVI a XVIII)", in CUNHA, Manuela Carneiro da (org.), História dos Índios no Brasil, 2a edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.117, segundo a qual a legislação indigenista colonial não deve ser considerada confusa e conflitante, com alguns momentos de liberdade e outros de escravidão, visto que há uma clara diferença de tratamento legal entre os índios aliados e inimigos o que explica as aparentes contradições na legislação, pois ao invés de uma política de administração dos índios que repetidamente se nega, existem duas políticas oficiais uma protetiva para os aliados e outra de conquista para os inimigos.

O duplo tratamento que inicialmente se percebe claramente, vai com o passar do tempo se mostrando menos radical, mas não menos significativo. Assim, a dicotomia entre índios aliados e inimigos passa muito lentamente a ser entre índios integrados e índios isolados. No Império, apenas os índios que tiveram contato com os não-índios e estão se integrando terão proteção estatal, ao passo que os índios isolados não terão, por exemplo, garantias sobre sua ocupação de terras.

Na República a distinção em índios integrados e isolados, continua como demostra o Estatuto do Índio de 1973, ainda em vigor, período que é analisado na nossa dissertação.

Antes de iniciar o exame das fontes de origem portuguesas, merecem lembrança alguns diplomas da Igreja Católica, que na época colonial desempenhava um papel decisivo nas relações entre os Estados soberanos que se formavam.

As Bulas Papais

A série de Bulas Papais dirigidas aos países ibéricos no século XV e começo do XVI, registram a história de como a expansão comercial pelos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico esteve atrelada a motivos religiosos. Ademais, como a própria formação dos Estados Ibéricos se deu com a expulsão de muçulmanos, pode se dizer que a expansão pelo oceano atlântico se originou, em parte, de guerras religiosas. Nas novas conquistas dois foram os principais resultados: novas terras e novos povos.

De fato, na Bula de Calixto III de 13 de março de 1456, mostra-se a preocupação de fortalecer a fé Cristã nas regiões limítrofes com os povos “sarracenos”. Faz-se referência a Bula de Nicolau V, de 8 de janeiro de 1454, a qual Calixto III confirma para o Rei Afonso e o Infante Henrique de Portugal, pois foram eles, como a Bula atesta, que tomaram terras do domínio “sarraceno” e, assim, passaram para a religião Cristã “(...)ilhas, terras, portos, e lugares localizados no mar Oceanos, em direção à plaga meridional, na Guiné(...)”, além de custearem essas conquistas. E é isso que justifica a concessão e doação da região para a Ordem de Cristo, liderada pelo Infante Henrique, de forma perpétua a jurisdição espiritual e a ordinária de todos os lugares referidos como para outros a que se vierem tomar dos “sarracenos”. A Bula ainda afirma, que a religião da Ordem de Cristo pode trazer “frutos salutares ao Senhor” nas regiões conquistadas.

Em 21 de junho de 1481, por meio de outra Bula, Sisto IV, volta a reafirmar as disposições das Bulas anteriores. Saúda os Reis portugueses por terem levado para lugares remotos a religião cristã, lutando contra os inimigos da Fé. Reconhecendo que foram levantadas novas igrejas em ilhas solitárias do Oceano. Reafirma a necessidade da guerra contra os povos gentios, nas regiões descobertas. Admite-se que houve sacrifícios dos Reis de Portugal nas descobertas e, por isso, confirma que as novas terras conquistadas pertencem ao dito Rei. Declara que o Rei português tem o poder de construir igrejas e mandar religiosos para ouvir confissões nessas regiões. E, no fim dessa Bula, é confirmado acordo de Paz e divisão das descobertas entre os Reis de Portugal e de Castela e Leão.

Pouco tempo depois, na Bula “Inter caetera”, de 3 de maio de 1493, o Papa se dirige aos Reis Fernando e Izabel de Castela, Leão, Aragão, Sicília e Granada. Essa Bula contém teores semelhantes às Bulas anteriores, com a diferença de se traçar uma linha a cem léguas dos Açores e Cabo Verde dividindo o domínio espanhol do português.

Essas Bulas contam a história de como a religião Cristã tornou-se ponto fundamental na conquista do novo mundo. Com os princípios traçados nessas Bulas é que a colonização se deu. A expansão inicial se justificou pela guerra contra os muçulmanos e pela divulgação da fé católica. E depois esses fundamentos inicialmente voltados para os muçulmanos foram adaptados para os nativos do novo continente.

A preocupação principal das Bulas, até aqui apresentadas, foi sobre o destino das novas terras descobertas e conquistadas, contudo com o encontro de novos povos desconhecidos da Europa, o Papa entende por bem diferenciar o tratamento dado a esses daquele dispensado aos muçulmanos e africanos.

Nota-se que nas Bulas aqui comentadas não havia essa diferenciação de tratamento. Por exemplo, na já referida Bula “Inter caetera”, o Papa Alexandre IV determina, que as “nações bárbaras” devem ser reduzidas e dominadas na fé católica. Além disso, reconhece as ações feitas para levar os naturais e habitantes das novas terras a confessarem a religião católica. E por fim afirma para o Rei que “com o favor da Clemência Divina submetestes as ilhas e terras sobreditas e seus habitantes, e os convertestes à fé católica”. Todas essas passagens mostram como não houve distinções entre os chamados “povos bárbaros”. Ademais, pode-se subsumir desses textos que a única obrigação dos conquistadores em relação aos novos povos era de convertê-los ao catolicismo, sem nenhuma limitação expressa quanto aos meios para sua realização.

Isso muda em 1537, com o Papa Paulo III, na Bula “Veritas ipsa”, em que adverte e se diz contrário a prática de alguns de negar aos novos povos as características da espécie humana e assim se afastar da obrigação de conversão, visto que apenas as pessoas humanas poderiam professar uma religião. Por isso, na mesma Bula, Paulo III declara que os índios “não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e que não devem ser reduzidos a servidão. Declarando que os ditos índios, e as demais gentes hão de ser atraídas, e convidadas à Fé de Cristo, com a pregação da palavra divina, e com o exemplo de boa vida.”. Nessa passagem, fica clara a ruptura entre o tratamento que deve ser dispensado aos índios daquele que foi realizado contra os “sarracenos”, inclusive com referência à propriedade dos índios que deveria ser respeitada.

Por fim cabe mencionar que o Papa Urbano VIII, em 1639, volta ao assunto no Breve Commissum Nobis, atestando que “actos de inhumanidade” vem sendo cometidos contra os índios do Brasil e em outras partes. Proíbe, então, que se escravize e negocie índios.

Nos próximos tópicos veremos como as disposições papais foram interpretadas por Portugal por meio de sua legislação nacional.

O início do povoamento: Capitanias, Governo Geral e Sesmarias

Assim, quem era cristão em Portugal e nas suas colônias tinha mais direitos, vide a situação dos mouros e judeus que foram obrigados a se converterem para permanecerem em Portugal. Como as Ordenações Manuelinas relatam até o mês de outubro de 1497 todos os judeus e mouros deveriam sair do país (Ordenações Manuelinas, Livro 2, Título 41 “Que os Judeus e Mouros forros se saiam destes Reynos e nom morem, nem estem nelles” e 42 “De como o Christão que foi Judeu deue de herdar a seu pay, e a sua mãy, e aos outros parentes”).

Logo, por determinação do Rei, a povoação do Brasil se daria por cristãos por meio da concessão de sesmarias. Primeiro foi confiada essa tarefa aos Capitães Donatários. Para receber uma dessas concessões havia vários requisitos e deveres. Um deles era ser cristão, dessa maneira, os nativos da América, por não conhecerem o catolicismo, estavam inicialmente impedidos de receberem sesmarias, ver, nesse sentido, a carta de foral para Pero Lopes de Sousa e a carta de foral para Martim Afonso de Sousa ambas de 06-10-1534.

De fato nas “Cartas de doação e foraes de Capitanias” é expressa a necessidade de ser cristão para poder receber uma sesmaria o que excluiria os “gentios” e tal restrição se confirma quando no mesmo diploma se dava a limitação de comerciar, que também apenas poderia ser feita com cristãos, aqui fazendo expressa referência a exclusão de “gentios”.

Consequentemente por não serem cristãos e não viverem da mesma foram que os europeus a ocupação original das terras pelos índios não foi respeitada pelos Portugueses.

Assim as terras brasileiras foram dividas em Capitanias, sendo responsabilidade do seu respectivo Capitão distribuí-las em sesmarias. Mas, pela dificuldade da empresa, o Rei D. João III, decide, para “conservar e enobrecer” as Capitanias, fazer uma fortaleza e povoação na Bahia de todos os Santos, que ajudaria as outras povoações, na administração da justiça e da fazenda do Rei, e nomeia Tomé de Souza o primeiro Governador Geral do Brasil, a quem os Capitães das Capitanias deviam obediência, conforme a Carta Régia de 07-01-1549.

O Governo Geral de Mem de Sá

É com Mem de Sá, o terceiro Governador Geral, que veremos os desígnios do Papa, previstos na Bula de 1537, serem aplicados por Portugal e se chocarem com os interesses econômicos da tomada de terras e escravidão dos índios.

Em 1558, Mem de Sá depois de informar Portugal da situação da colônia recebe duas Cartas Régias (Carta Régia de 1558 e Carta Régia de Dezembro de 1558) nas quais é lembrado de que o “intento” do “descobrimento” é a propagação do catolicismo e assim recomenda que o índio cristão deve ser respeitado e preservado em suas terras, todavia há também referência ao combate contra os índios da Capitania do Espírito Santo do Capitão Vasco Fernandes Coutinho. Esse ataque resultou, como essa Carta Régia explica, em que os índios não “levantariam tão cedo cabeça” caracterizando o evento como uma guerra. Nessas Cartas Régias também é destacado a morte de Fernão de Sá, filho de Mem de Sá, na batalha contra os índios e o pesar que isso causou.

Na Carta Régia de dezembro de 1558, destinada à Câmara dos Vereadores da Cidade de Salvador, havia ordens para ajudar a Companhia de Jesus na obra de conversão dos índios, determinando que “aos gemtios que se fizerem christãos tratareis bem, e nam os avexeys nem lhes tomeis suas terras, por que alem disto asi ser rezam e justiça receberei muito contentamento em o asy fazerdes, pelo exemplo que os outros gentios receberam”.

Essas duas Cartas Régias ilustram de maneira clara a situação que vai se repetir por todo o período colonial, isto é, de um lado proteção ao índios convertidos ou aliados e de outro lado guerra aos índios resistentes.

E nesse sentido, serão doadas sesmarias aos índios convertidos. É o que acontece em Carta de Sesmaria de 7 de setembro de 1562, em que os índios figuram como suplicantes de algumas terras para cultivo, argumentado que já são cristãos, que ergueram igrejas e têm ouvidos os ensinamentos dos padres. Ainda na mesma Carta, afirma-se que tal doação é justificada, pois para se conservarem os índios como católicos eles necessitam de terras convenientes, porque eles não têm terras próprias e se ficarem sem terras podem voltar aos antigos costumes e, assim, devem ser mantidos na posse e senhorio da sesmaria concedida. Essa carta é confirmada e ratificada por Mem de Sá e pela Rainha Catarina da Áustria, então regente de Portugal em nome de seu neto D. Sebastião.

Também foram doadas sesmarias para a construção de colégios que iriam doutrinar na religião cristã os índios e outros habitantes da colônia. E assim se decide a construção de um colégio no sul da colônia para ajudar na tarefa que já havia se iniciado na cidade de Salvador. Inicialmente planejado para a Capitania de São Vicente, o colégio foi construído no Rio de Janeiro, Carta Régiade 15-01-1565.

Ao mesmo tempo em que se manda proteger uns índios outros estão sendo escravizados. Essa escravidão se justificaria quando os índios fossem resgatados ou tomados em guerra. Porém, na prática existiam índios já pacificados morando em aldeias dos padres que estavam sendo escravizados. Os donos de escravos alegavam que os índios fugiam e se refugiavam nas aldeias dos padres, por isso reivindicavam os escravos nas aldeias. Para reparar possíveis abusos Mem de Sá, o Bispo de Salvador e o Ouvidor Geral do Brasil tomam resolução em que determinam que somente se entreguem índios aldeados para o cativeiro quando se tiver autorização do Governador ou do Ouvidor. Essa autorização se conseguiria mediante julgamento para verificar se o índio tinha se tornado escravo de modo justo. Esse autorização também seria necessária na venda de escravos. E para cuidar dos interesses dos índios é instituído um Procurador dos Índios, conforme a citada resolução de 30-07-1566.

Novamente, por Carta Régia, em 1566, sendo o remetente D. Sebastião, recomenda a Mem de Sá a tarefa da conversão dos índios, inclusive mandando que se respeitem as terras dos índios que não se converteram para assim mostrar que “se pretende mais sua salvação que sua fazenda”. E quando convertidos deveriam integrar-se os índios com os colonos, mandando que os colonos fossem morar nas aldeias indígenas. O Rei explica a Carta com os seguintes termos: “porque com assi ser, e em tais obras se ter este intento, se justifica o temporal que Nosso Senhor muitas vezes nega quando há descuydo no spiritual”. Ou seja, o poder temporal que o Rei tem sobre o Brasil apenas se justificaria na medida dos trabalhos no campo espiritual, o que mostra um respeito do Rei às Bulas Papais que haviam concedido as terras do Brasil com o dever de propagação da religião cristã.

Além disso, essa Carta revela outro grave problema que os índios estavam morrendo ou fugindo ao serem escravizados, assim, o Rei determina que “pera os tais injustos cativeiros se evitarem, de maneira que aja gente com que se grangeem as fazendas e se cultive a terra;”. Logo proíbe a escravidão, em alguns casos, por dois motivos: para não desincentivar a conversão do índio e manter um número constante de mão-de-obra, pois essa proibição de escravidão não quer dizer a proibição do uso do índio como mão-de-obra, o índio convertido ou aliado deveria trabalhar nas fazendas e cultivar a terra.

Com relação às terras ocupadas por índios, em 1571, Mem de Sá, diante da grande ocupação de terras indígenas por portugueses, manda que se respeitem as terras que forem dadas aos índios, “sob pena de perderem as benfeitorias, e todo direito que nelas pretenderem ter” além de imposição de multa, Provisão de 02-05-1571. Nota-se que o Governador do Brasil se refere apenas as terras dadas aos índios, não se trata de uma proteção geral.

Escravidão indígena

Apesar de algumas restrições, a escravidão de índios foi uma prática do período colonial. Em 1574 o governador das capitanias do norte do Brasil, Luiz de Brito d'Almeida, em conjunto com o governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, toma assento no qual determina que os índios das aldeias, onde padres residem, e das povoações não podem ser escravizados, o que somente seria permitido com os índios tomados em guerra lícita. Para se fazer guerra lícita contra os índios ela deveria ser autorizada pelo Governador ou Capitão da Capitania e as razões da guerra discutidas pelos oficiais da Câmara, pelo Provedor, pelos padres da Companhia de Jesus e pelo vigário da Capitania. Além disso, ficou instituído um exame para analisar se a captura de indígenas era justa, tal exame devia ser feito pelo Provedor e mais dois homens eleitos na Câmara, sendo que sua decisão seria registrada. E ficariam sem proteção aqueles índios que fugissem das aldeias dos padres por mais de um ano.

Como dissemos, apesar de se proibir a escravidão dos índios que vivessem em aldeias dos padres ou em povoações, não era proibido o seu uso pelos colonos como mão-de-obra. Dessa forma, os padres ou administradores de povoações repartiam os índios que estavam sob sua jurisdição entre aqueles que necessitassem de mão-de-obra, sendo que essa deveria ser remunerada e os índios não poderiam ficar trabalhando por mais de um mês sem voltar para a aldeia dos padres ou povoamentos, pois quando isso acontecia geralmente abandonavam suas famílias e começavam outras. Além disse, se se ausentassem por muito tempo poderiam deixar de ser cristãos, perder seus bens, além de despovoar as aldeias ou povoamentos. Tudo isso está narrado no Alvará de 20 de novembro de 1575, de D. Sebastião, que manda que se deve proteger os índios cristãos e evitar que se afastem por mais de um mês. Ademais, os indígenas convertidos auxiliariam no combate contra os índios ainda infiéis.

Da análise desses diplomas pode se perceber que mesmo os índios convertidos não tinham toda a sua liberdade garantida, visto que poderiam ser perseguidos caso fugissem da aldeia dos padres ou das povoações e deveriam submeter-se aos modos de vida dos não-índios, trabalhando nas fazendas, cultivando a terra recebendo para tanto uma remuneração e, ainda, deveriam ajudar na defesa e conversão dos outros índios.

Já no ano de 1580, em uma Carta de Sesmaria, reconhece-se que os índios são os “naturaes das ditas terras”, mas por não saberem não pediram a concessão de sesmaria anteriormente, sendo que muitas das terras pedidas já haviam sido concedidas a portugueses. Segundo a Carta, isso seria ruim, pois, por falta dessa terra, os índios teriam de ir viver longe onde não poderiam ser doutrinados na fé católica. Por isso é concedido sesmaria aos índios, depois justificando que a maioria já é cristã. Outro argumento que utiliza é que esses índios estariam prontos para defender a terra. Essa Carta de sesmaria mostra que não bastaria o reconhecimento dos índios como primeiros e originais moradores da região, eles necessitariam estar em processo de conversão para poderem ter a garantia da concessão de sesmaria.

Nessas concessões de sesmarias são impostas aos índios as mesmas condições que os portugueses tinham. A condição de ser cristão podia ser flexibilizada se os índios já estivessem em processo de conversão. Fora disso a proteção às terras dos índios não convertidos é dependente de sua possível conversão. Já aqueles que resistem à ocupação portuguesa não têm os direitos tutelados e poderiam ser escravizados, sendo que mesmo os convertidos sofriam sérias restrições na sua liberdade.

A União Ibérica

Com a União Ibérica problemas com a ocupação de terras de indígenas e captura de índios para trabalhos forçados se acentuam, vejamos como a península unida tratou deles.

Em 1582, pela primeira vez se dá uma ordem geral para o Governador, o Provedor-mor e para as Câmaras das Capitanias do Brasil, por meio de um Alvará, para se conceder sesmarias aos índios que descerem e se converterem e caso elas fossem tomadas deviam ser restituídas. O Rei afirma que tal medida beneficiaria as fazendas e os engenhos. E os índios que descessem deveriam ser repartidos entre as aldeias e terem sesmarias para fazerem suas lavouras e poderem se manter.

Ainda não havia no Brasil lei ou ordem geral sobre a administração das aldeias dos índios, por isso o Rei de Portugal e Espanha, Filipe II (III na Espanha), manda por Carta Régia, consultar o Bispo, sobre a decisão do Governador Geral do Brasil de se colocarem religiosos para administrar as aldeias de índios, além de os batizarem e doutrinarem.

Enquanto essa questão não foi decidida, enfrentava-se outras questões particulares, como quanto aos índios libertos da Capitania de São Vicente: depois de serem capturados, muitos conseguiam a liberdade, por exemplo, pela pressão das ordens religiosas. Para os índios libertos, portanto, já parcialmente aculturados, eram concedidas terras sobre as quais ninguém poderia trabalhar sem a permissão deles, estabelecendo-se pena de degredo a quem descumprisse essa ordem, como está previsto na provisãode julho de 1604.

O Rei Filipe II estava planejando uma lei geral sobre a administração dos índios e nesse sentido, como primeira etapa da nova legislação, estabelece por uma provisão, de 5 de junho de 1605, a proibição em qualquer caso do cativeiro do índio, tendo em vista o objetivo da propagação da fé católica que não podia se conciliar com a escravidão. No século XVI, como essa própria provisão atesta, o cativeiro de índios era permitido o que mostra uma clara ruptura no tratamento do índio do domínio anterior de Portugal para domínio, no começo do século XVII, da União Ibérica.

Uma lei sobre a administração dos índios estava nos pensamentos do Rei Filipe II, pelo menos desde 1604, é finalmente concretizada em 30 de julho de 1609, quando é elaborada Lei que confirma a provisão de 1605. Essa Lei informa que anteriormente se dava o cativeiro do índio, mas que a continuação desses atos não beneficia o governo e a paz da colônia. Logo se vê que à Metrópole não interessava que se estivesse em estado de guerra com o índio. O que se buscava, ao contrário, era uma aliança, e, por isso são protegidos não só os índios já convertidos ao catolicismo, mas todos, e que se devem respeitar os seus ritos e cerimônias. E a Lei de 1609 vai além, pois ademais de proteger a liberdade do índio, também protege sua terra: "(...) os ditos gentios sejam senhores das suas fazendas, nas povoações em que morarem, como o são na serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer molestia, nem injustiça alguma.(...)".

Essa Lei não protege apenas as povoações, onde há ingerência de missionários ou de agentes do Estado, mas, igualmente, protege as terras da serra, as terras onde o índio ainda mora conforme seus ritos e cerimônias originais.

Essa proteção às terras indígenas, que poderia ser interpretada como ampla e geral, foi, no entanto, relativizada pela própria Lei, pois, em outra passagem, ela apenas assegura a posse das terras que lhes forem designadas pelos religiosos, e não de todas as terras que ocupam: “(e) o Governador, com o parecer do ditos Religiosos, aos que vierem da serra assignará logares, para nelles lavrarem, e cultivarem,(...)e das Capitanias, e logares, que lhes forem ordenados, não poderão ser mandados para outros contra sua vontade”. Daí se conclui que há uma proteção maior às terras ocupadas por índios, que forem dadas para eles por intermédio dos religiosos, enquanto que as terras que ocupam originalmente, sem qualquer intermédio, as terras das serras, contariam com menor proteção. Assim, as terras das serras seriam dos índios até eles serem convencidos a descerem para as povoações.

De qualquer maneira, há uma mudança no conteúdo das normas que se dá para evitar prejuízos maiores que estavam ocorrendo com os índios convertidos ou em fase de conversão. A Lei de 30 de julho de 1609 explica que tratar o índio com violência era para ser permitido apenas em casos de exceção (guerra defensiva e rebelião de aldeias), mas esse tratamento acabou virando regra. Muitas vezes eram capturados índios já convertidos sob pretexto de que ainda fossem selvagens, ou tinham-se rebelado. Por essa razão, o Rei decide proibir qualquer tipo de cativeiro para não dar margem aos desvios.

Também existe previsão de que o índios não podem ser constrangidos a qualquer trabalho e se decidir trabalhar deve ser remunerado.

Por essa Lei, apenas os religiosos da Companhia de Jesus poderiam ir encontrar índios que morassem nas serras para “os domesticarem, e assegurarem em sua liberdade”. Nota-se que não havia contradição entre assegurar a liberdade do índios e ao mesmo tempo “domesticá-lo”, na época “civilizar e converter” o índio era uma forma de libertá-lo de costumes considerados primitivos e selvagens, o que não poderia se fazer era forçá-lo a trabalhar.

A liberdade assegurada por essa Lei igualmente protegia o índio de não ser removido, sem seu consentimento, de uma terra que lhes houvesse sido dada.

Quanto à possíveis demandas entre índios e mercadores decide instituir um juiz nas povoações que não tiverem um Ouvidor, com jurisdição de até 10 cruzados no cível e 30 dias no crime, além disso o tramite legal ocorreria na Justiça Ordinária. E se decide que os índios terão um representante para poderem pleitear as suas revindicações .

A administração dos índios ficou a cargo dos religiosos da Companhia de Jesus tanto no espiritual quanto na repartição dos índios que forem necessários para os trabalhos requisitados pelo Governador, Capitão ou colonos, assim facilitando o acesso à mão-de-obra livre. A Lei adverte que quando os religiosos se servirem dos índios igualmente devem pagar pelo seu trabalho.

Determina que os índios não serão tributados diferentemente das outras pessoas da população. O Rei, ainda, manda colocar em liberdade todos os índios escravizados, deter minado penas para quem violar a Lei. Por fim, a Lei, revoga todas as disposições anteriores sobre a liberdade dos nativos, sem mencionar nenhuma lei especifica, mas englobando toda a legislação anterior ao período Filipino, que permitia o cativeiro.

Deve ter-se em conta que em nenhum momento essa Lei proíbe a guerra contra o índio. Poderia se fazer guerra contra os índios, mas não se poderia escravizar o índio vencido, esses deveriam ser postos em liberdade aos cuidados dos padres. Em outras palavras pode dizer-se que somente estava proibido a guerra voltada à captura de indígenas para escravizá-los.

Em 10 de setembro de 1611, D. Filipe II, faz outra Lei, que revoga em parte a Lei de 1609. Repetem-se as disposições relativas às terras dos índios. A mudança que se dá é na proibição do cativeiro, que já não é irrestrita.

A Lei de 1611 cria exceções nos casos de guerra, rebelião e levantamento: “ fará o Governador do dito Estado, Junta, com o Bispo, sendo presente, e com chanceller e Desembargadores da Relação, e todos os Prelados das Ordens, que forem presentes no logar, aonde se fizer a tal Junta, e nella se averiguará, se convem, e é necessario ao bem do Estado, fazer-se guerra ao dito Gentío, e se ella é justa; e do assento, que se tomar, se me dará conta, com relação das causas, que para isso ha, para eu as mandar ver; e approvando, que se deve fazer a guerra, se fará; e serão captivos todos os Gentios, que nella se captivarem.”

Entretanto, a aprovação do Rei para a guerra seria dispensável caso a demora representasse perigo, devendo-se relatar a guerra posteriormente ao Rei.

Outra exceção da liberdade geral do índio seria a compra de índios prisioneiros de outras tribos indígenas, que segundo a Lei poderiam ser vítimas de canibalismo, portanto seria justificável escravizá-los para salvá-los da morte.

Com relação à administração dos índios a Lei de 1611 institui a função de Capitão da Aldeia, a ser exercida por “pessoas seculares, casados, de boa vida e costumes”, com cargo de três anos e eles deveriam ir, com um religioso, persuadir, sem o uso da força, os índios não aldeados a descerem para os povoamentos. E o Capitão da Aldeia fica sendo o responsável da repartição dos índios em povoações de até 300 casais. Aqui, também há mudança já que essas funções eram antes exercidas por religiosos da Companhia de Jesus.

Outra mudança é que o Capitão da Aldeia será o juiz das causas dos índios, sendo a apelação para a Ouvidoria da Capitania e depois para o Provedor-mor. Ainda dentre as tarefa do Capitão ele deve ensinar os índios a trabalhar e protegê-los de quaisquer maus-tratos.

Todos os custos da Aldeia deveriam ser pagos pelos próprios índios, o que significa que eles teriam uma obrigação de trabalhar para no mínimo pagarem as despesas da Aldeia.

A Lei determina que cada aldeia deveria ter uma Igreja, que serviria como local para “confessarem, sacramentarem, ensinarem, e doutrinarem nas cousas de sua Salvação” os índios.

Portanto, a proibição ampla do cativeiro contra o índio dura apenas 3 anos (1609-1611), o que demonstra que não houve uma mudança definitiva na legislação, a lei continua protegendo somente os índios que possivelmente seriam convertidos ou já estavam convertidos.

O Rei Filipe III (IV na Espanha), seguiu a legislação de seu pai, como exemplifica o Decreto de 18 de Setembro de 1628, em que manda “proceder contra os moradores de S. Paulo no Brazil” que estavam escravizando índios que moravam em aldeias dos Jesuítas. No mesmo sentido é a Carta Régia de 5 de outubro de 1628, direcionada para todos os índios do Brasil, Maranhão e Pará, mandando-se tomar medidas para a melhor execução das “Lei, e ordens dadas, tocantes á liberdade do Gentio”.

Depois, em agosto de 1640, é enviada Carta Régia para o Brasil e Maranhão, afirmando que “por nenhuma via os gentios hão de ser captivos, nem obrigados ao serviço de particulares”. E manda-se que os índios aldeados devem obediência aos religiosos. O seu trabalho será pago, sendo que os índios devem se ocupar do cultivo da terra.

Nessa carta não há referência às exceções em que poderiam ser escravizados os índios, mas como trata-se de Carta Régia e não de Lei e não há referência à revogação de normas em contrário, como a Lei de 1609 e de 1611 fizeram, parece que as exceções continuavam a valer.

A Restauração

Em dezembro de 1640 tem fim a União Ibérica. D. João IV, o novo Rei de Portugal, em 1647 volta a legislar sobre o tópico da liberdade dos índios em um Alvará, nesse se combate a própria administração dos índios, posto que, como o Alvará relata, esse poder havia sido abusado levando muitos índios a fugirem das aldeias ou a morrerem por fome e excesso de trabalho. Para reparar esse dano o Rei determina que os índios sejam livres da administração, para poderem trabalhar livremente. Nesse diploma legislativo igualmente não há referência às exceções em que poderiam ser escravizados os índios.

Mas, pela Provisão de 17 de outubro de 1653, dirigida para o Estado do Maranhão, as disposições da Lei de 1611 de permissão do cativeiro do índio em alguns casos são reafirmadas, dispondo mais especificamente em quais ocasiões pode se dar o cativeiro: “Preceder guerra justa: e para se saber se o é, ha de constar que o dito gentio livre, ou vassallo meu, impedio a prégação do Sagrado Evangelho, e deixou de defender as vidas e fazendas de meus Vassallos em qualquer parte; “Haver-se lançado com os inimigos da minha Coròa, e dado ajuda contra os meus Vassallos; “Exercitar latrocinios por mar e por terra, infestando os caminhos, salteando, ou impedindo o commercio e trato dos homens, para suas fazendas e lavouras; “Se os Indios meus subditos faltarem ás obrigações que lhe foram postas e aceitadas nos principios das suas conquistas, negando os tributos, e não obedecendo quando forem chamados para trabalharem em meu serviço, ou para pelejarem com os meus inimigos; “Se comerem carne humana, sendo meus subditos.”

Reafirma-se que não deve existir administrador dos índios, os quais devem organizar sozinhos a divisão voluntária dos trabalhos a eles requisitados, mediante pagamento de salário.

Com relação às concessões de sesmarias há uma provisão do Governador Geral Jeronymo de Athaide, de 23 de junho de 1656, que manda restituir terras aos índios que foram datas anteriormente a eles, e que naquele momento estavam sendo concedidas como sesmarias para outras pessoas. Note-se que a justificativa para devolver as terras não é a de que os índios são os naturais e originários possuidores, mas o fato de terem lhes sido dadas como sesmaria.

Outra evidência que aponta que as terras de ocupação originárias dos índios contavam com menos proteção do que aquelas dadas a eles, é a Ordem, de 23 de setembro de 1664, do Vice-Rei do Estado do Brasil, Vasco Mascarenhas, que diante de ataques indígenas manda o descimento desses índios da “Aldeia da Jacobina” e outros da região para serem convertidos. Manda quarenta soldados e cem índios convertidos para cumprirem a tarefa, podendo usar da força armada e que “fiquem destruidas, e assoladas as que lhe resistirem”. E aos índios que descerem manda serem confiadas terras para sua subsistência.

Essa Ordem mostra claramente que a intenção da proteção das terras indígenas se restringe aos índios pacificados.

No Maranhão a concorrência pela mão-de-obra indígena escrava era intensa, em 1667, o Capitão Geral do Maranhão, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em uma Ordem, explica que a disputa que estava ocorrendo era para saber quem era o responsável pela repartição dos índios, o Capitão Geral decide suspender a divisão dos índios até janeiro e depois a repartição seria feita pelo juiz mais velho da Câmara com recurso somente para o Capitão Geral.

Na Capitania de Pernambuco é promulgado novo Regimento em 19 de agosto de 1670, o qual reafirma que a causa do povoamento das terras brasileiras foi a conversão dos índios. Logo, incumbe ao Governador privilegiar o índio que se converter dando-lhe terra para que compreenda que em se convertendo ganharia além do espiritual o temporal. Ainda manda que se reparta as terras da capitania em sesmarias para a produção de açúcar, mas nessa concessão de terras nada afirma sobre respeitar a ocupação primária indígena.

O que se fez para Capitania de Pernambuco é repetido no Regimento para os Governadores Gerais do Brasil em 23 de janeiro de 1677, e também se ordena que o índio rebelde deveria ser controlado.

E nesse período se está em guerra contra o índio resistente da Bahia, como se pode comprovar pelas Cartas de Patentes de 1671, em que se nomeiam Sargentos-mores, Capitães-Mores, alguns militares da Capitania de São Vicente e outros de São Paulo para guerrear com os índios estabelecendo para eles poderes para gozar das terras conquistadas e escravizar os índios capturados, o que demonstra que para os índios resistentes as Leis de liberdade não se aplicavam.

Enquanto isso, os Religiosos Capuchos do Convento de Santo Antonio do Pará, no Estado de Maranhão, conseguem manter a sua administração sobre os índios na sua Missão, apesar da administração ter sido proibida, tal poder é dado pelo Príncipe Regente, D. Pedro de Bragança, por Provisão, justificando que os índios não podiam se sustentar sem a ajuda dos religiosos.

O que acontece na legislação no século XVII se repete nos séculos seguintes, isto é, leis protetoras dos índios convertidos, eventualmente leis de proteção geral para prevenir abusos e a guerra contra os índios rebeldes.

Todavia, na prática, apesar do índio aliado ou convertido contar com maior proteção ele, também, perdia sua terra de ocupação primária e original, pois deveria morar em aldeias ou povoações onde lhe seria designado terras para seu sustento, e essas sim contavam com uma proteção maior contra esbulhos de terceiros.

A Provisão de 1 de abril de 1680

A Provisão de 1 de abril de 1680, voltada para o Estado de Maranhão, afirma que se deve respeitar as terras dos índios “primarios e naturaes senhores dellas”, mas essa passagem não deve ser entendida isoladamente, pois como está no texto da Provisão trata-se de um diploma “sobre a repartição dos Indios”.

E, de fato, da mesma forma que na Carta Régia de 1566 e na Lei de 1609 o objetivo é a conversão do índio e suas terras serão protegidas na medida dessa conversão. Se havia proteção às terras indígenas era porque havia possibilidade de convertê-los ou já estavam em processo de o serem e um ataque não incentivaria o conhecimento do catolicismo. Como vimos para aqueles índios rebeldes ou aqueles que resistissem a conversão não havia proteção.

Nesse sentido, ordena-se a “domesticação” do índio e o aumento da população indígena nas povoações por meio de descimentos, revelando a preocupação com um contingente estável de indígenas nesses locais, que poderia ser repartido como mão-de-obra. E nessa tarefa as autoridades responsáveis poderiam requisitar proteção ao Governador, no caso de haver resistência aos desígnios da provisão: “somente quando forem os ditos Missionarios a algua paragem arriscada pela vizinhança de alguns barbaros, ou em que por qualquer razão haja perigo, o Governador lhe mandará dar a parte de Armas necessarias para a segurança do intento”.

No mesmo primeiro de abril, são promulgados um Alvará e uma Lei, todos voltados para o Estado do Maranhão. O Alvará trata sobre o aumento do número de missionários para trabalharem na conversão do índio e da necessária majoração de verbas destinada aos padres para sustentar esse aumento de missionários. Já a Lei reafirma a proibição à escravidão indígena, para não permitir “pretextos simulações e dolo com que a malicia abusando dos casos em que os captiveiros são justos introduz os injustos”. No entanto, essa Lei reconhece a possibilidade de se fazerem guerras contra os índios, a única ressalva foi que os prisioneiros de guerra devem ser tratados “como ficão as pessoas que se tomão nas guerras da Europa”, sendo prerrogativa do governador repartir os prisioneiros entre as aldeias de índios católicos e livres. Por fim, há expressa revogação das leis anteriores em contrário.

Para a Metrópole, também, interessava a aliança com o índio para se poder assegurar as fronteiras da colônia de invasões de outras nações europeias.

Nesse sentido, em uma Carta Régia de 21 de dezembro de 1686, vê-se o intento do Rei português em criar uma aliança com os índios para impedir invasões de outros Estados e assegurar as terras da Coroa. Os índios aliados se tornariam uma verdadeira muralha humana frente às invasões. Os índios seriam as “muralhas dos sertões”.

E como aconteceu antes, em 1688, por alvará, volta se a permitir a escravidão no Estado do Maranhão, para o casos de índios cativos de outros índios; o caso de guerra defensiva em que índios invadem terras do Estado do Maranhão ou de aldeias dos padres; o caso de guerra ofensiva em que os índios estejam preparando uma invasão; e também o caso de índios que impedirem, com violência, o trabalho dos missionários. Sendo que nas guerras o cativeiro apenas poderia durar o tempo da própria guerra. E de tudo se deveria prestar conta ao Rei. Por fim, os índios capturados seriam repartidos pelas Câmaras. Além disso, esse Alvará previa penas para aqueles que escravizassem índios ilicitamente, penas que foram aumentadas em 1691, por meio de outro Alvará, devido à inúmeras violações do Alvará de 1688 pela população do Maranhão.

Outro exemplo do uso da guerra se dá em 1694, na Capitania do Rio Grande (posteriormente Estado de Rio Grande do Norte), o Governador da Capitania, Dom João de Lancastro, explica em Carta a situação de hostilidades com os índios que deveria ser pacificada com a guerra, se fosse impossível a paz.

Assim, de um lado protege-se os índios convertidos, como em 7 de setembro de 1696 em que por Carta Régia o Rei manda o Capitão-mor da Paraíba restituir as sesmarias dadas aos índios que estavam esbulhadas por não-índios; em 8 de janeiro de 1697, avisado, por um religioso, da situação de índios em processo de conversão, o Rei manda por Carta Régia dar sesmarias aos índios; e em 4 de março de 1697, por Lei, o Rei manda que não se maltrate os índios da Capitania do Ceará, para conservá-los na fé católica.

Do outro lado reprime-se os índios rebeldes, como em 9 de janeiro de 1697, por Carta Régia, mandando-se conquistar as terras de uns índios resistentes e após a dominação dar a terra para outras pessoas cultivarem; em 20 de novembro de 1699, por Carta Régia, o Rei manda aumentar o número de escravos indígenas no Maranhão para repor os escravos mortos.

No século XVIII há outros exemplos: o Governador Geral Rodrigo da Costa por carta de 19 de agosto de 1705 e carta de 2 de setembro de 1705 manda, em disputas de terras entre portugueses e índios apoiados por religiosos, respeitarem-se as terras dadas aos índios. Em Carta Régia de 10 de abril de 1709, o Rei, confirma a decisão do Governador do Maranhão de fazer descer mais índios "porque desta maneira não só se proverão as Aldeias de maior numero de Indios, mas terão estes moradores quem os sirva, e se augmentarão os defensores desse Estado, assim para acudirem ás occaziões que se offerecerem dos imnimigos que forem peleijar com os Indios do Corço, que infestão essas terras”.

Havia casos em que, mesmo sem a concessão de sesmaria, os índios, por intermédio de religiosos, conseguiam manter as terras que ocupavam, como é atestado por Ordem Régia, de 28 de fevereiro de 1716, de Rei Dom João V, manda-se conservarem os índios nas terras que foram de seus pais e avôs, sendo que a intervenção de religiosos demonstraria que os índios estão em processo de conversão e por isso merecedores da terra. Nesse sentido também a Carta Régia de 6 de outubro de 1716.

O Conselho Ultramarino também é desse entendimento: em 28 de abril de 1718 decide em consulta que deve se auxiliar os índios, representados por padres, a comprarem terras para não irem viver dispersos pelo sertão e se distanciar da conversão. Em 7 de maio de 1720 decide em consulta que deve se preservar as terras de aldeias organizadas em missão religiosa.

Essa dicotomia do tratamento dos índios do Brasil se revela até mesmo na definição do termo “indio” no “Vocabulario portuguez & latino”, de BLUTEAU, Raphael, Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728 :“Tambem chamamos Indios aos povos da America. No Brasil dividem os Portuguezes aos Barbaros, que vivem no Sertão em Indios mansos, & bravos. Indios mansos chamão aos que com algum modo de Republica (ainda, que tosca) são mais trataveis, & capazes de instrusão. Pello contrario chamão Indios bravos aos que pella sua natural indocilidade, não tem forma alguma de governo, nem admittem outras leys, que as que lhes dicta a sua fera natureza.”

Nas associações, entre índios e religiosos, havia uma administração em que os índios eram divididos entre as diversas tarefas das missões, como agricultura, pecuária, coleta de drogas do sertão e também a prestação de serviços nas fazendas vizinhas.

De fato, os padres jesuítas são muito ativos nessa área: o Rei ouvindo requerimento de um jesuíta manda, por Carta Régiaem 25 de janeiro de 1728, respeitar as terras indígenas, pois estão aldeados, têm igreja e ajunta-se a isso o fato de serem naturais senhores e possuidores das terras. Em mesmo sentido Carta Régia de 8 de julho de 1730, Carta Régia de 18 de março de 1733 e Carta Régia de 21 de agosto de 1741.

Reformas Pombalinas

O Rei D. José I nomeia, em 1750, Sebastião José de Carvalho e Melo, que viria ser o Marquês de Pombal, o seu Primeiro-Ministro o que lhe possibilita fazer várias reformas em Portugal, inclusive no campo do direito, destacando-se a influência do iluminismo.

A influência do Iluminismo no ordenamento jurídico português pode ser percebida na renovação do direito nacional em detrimento do direito romano e do direito canônico. A Lei da Boa Razão de 1769 determina a substituição da opinião das autoridades (Accursio e Bartolo) e o utrunque ius pela vontade do rei e a razão.

Dentro dessas reformas, os índios do Brasil, também, foram afetados, a ideia era não apenas converter o índio, mas realmente integrá-lo ao mundo português para participar como igual no comércio e na produção, pretendendo-se acabar com a divisão na população entre “selvagens” e “não-selvagens”.

Assim para aproximar essas populações, no Alvará de 4 de abril de 1755, válida para o Maranhão e para o Brasil, decide-se que para aumentar a povoação do Brasil deve-se incentivar o casamento de portugueses com índios. Aqueles que casassem não ficariam com infâmia alguma, ganhariam preferência na distribuição de terras e os seus descendentes seriam hábeis para qualquer profissão. Assim, proíbe que os descendentes desses casamentos sejam tratados como caboclos ou outro nome injurioso.

Mas, não há uma ruptura total entre as lei anteriores e as novas leis, usa-se a legislação antiga naquilo que se pode aproveitar, por exemplo, a Lei de 6 de junho de 1755, voltada para o Maranhão que teve sua vigência ampliada para o Brasil pelo Alvará de 8 de maio de 1758, retoma disposições das leis anteriores: declara-se a liberdade do índio e proíbe-se em todos os casos o seu cativeiro e escravidão. E no caso de guerras com os índio, os capturados ficariam prisioneiros como ficam as pessoas que se tomam nas guerras da Europa, devendo ser mandados para aldeias de índios já convertidos onde seriam libertados. Os índios seriam livres para trabalhar com quem quisessem e deveriam ser pagos pelos seus serviços. Determina-se que os índios seriam senhores das suas terras nas suas fazendas e no sertão. Contudo, o objetivo é por meio da “civilização” tornar o índio cultivador de suas terras e participante da economia colonial.

A maior contribuição do período pombalino, nesta matéria, é o Diretório de 3 de maio de 1757, voltada para o Maranhão que teve sua vigência ampliada para o Brasil pelo Alvará de 17 de agosto de 1758, trata-se de um verdadeiro código sobre como o índio deveria ser tratado.

A primeira grande reforma que introduz é a de tirar a administração dos índios dos religiosos, que deveriam ser substituídos por um Diretor:

“1 Sendo Sua Majestade Servido pelo Alvará com força de Lei de 7 de Junho de 1755 abolir a administração temporal, que os Regulares exercitavão nos Indios da Aldêas deste Estado; mandando-os governar pelos seus respectivos Principaes, como estes pela lastimosa rusticidade, e ignorancia, com que até agora forão educados, não tenhão a necessaria aptidão, que se requer para o Governo, sem que haja quem os possa dirigir, propondo-lhes não só os meios de civilidade, mas da conveniencia, e persuadindo-lhes os proprios ditames da racionalidade, de que vivão privados (...), haverá em cada huma das sobreditas Povoações, em quanto os Indios não tiverem capacidade para se governarem, hum Director (...) para poder dirigir com acerto os referidos Indios (...)”

Nota-se, que tal mudança é justificada pelos “ditames da racionalidade”, isto é, mostrando a influência do pensamento iluminista. E nesse sentido o Diretório é claro ao apontar que o modo de vida dos índios não é útil para o Estado:

“3 Não se podendo negar, que os Indios deste Estado se conservárão até agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos Sertões, em que nascêrão, praticando os pessimos, e abominaveis costumes do Paganismo (...) E sendo evidente, que as paternaes providencias do Nosso Augusto Soberano, se dirigem (...) para que sahindo da ignorância, e rusticidade, a que se achão reduzidos, possão ser úteis a si, aos moradores, e ao Estado (...).”

E para mudar essa situação deveria-se educar o índio para outro modo de vida começando pela língua:

“6 Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que conquistárão novos Dominios, introduzir logo nos Póvos conquistados o seu próprio idioma (...).”

“7 (...) haverá em todas as povoações duas Escólas publicas (...).”

No seu décimo parágrafo determinar que os índios terão nome e sobrenome para evitar confusões.

Outro dispositivo que ilustre bem o ataque ao modo de vida do índio, é a obrigação de mudar a suas moradias:

“12 Sendo indubitável, que para a incivilidade, e abatimento dos Indios, tem concorrido muito a indecência, com que se tratão em suas casas, assistindo diversas Familias em huma só, na qual vivem como brutos;(...) Cuidarão muito os Directores em desterrar das Povoações este prejudicialissimo abuso, persuadindo aos Indios que fabriquem as suas casas á imitação dos Brancos; fazendo nellas diversos repartimentos, onde vivendo as Familias com separação, possão guardar, como Racionaes, as Leis da honestidade, e policia.”

Também não seria permitido que os índios andassem nus, confirme o parágrafo 15 do Diretório. E é dada grande importância ao comércio, que teria a vantagem de “civilizar” os povos e nesse sentido dispõe que não convém os índios morarem em povoações pequenas, pois quanto maior a povoação maior é o comércio, conforme o parágrafo 77.

No Diretório repete-se a disposição de proteção das terras indígenas, inclusive daquelas que são naturais possuidores, entretanto por Parecer do Conselho Ultramarino da Bahia, de 19 de maio de 1759, fica suspenso a aplicação dessas disposições até futura decisão de uma consulta ao Rei. Na nossa pesquisa não conseguimos descobrir se o Rei decidiu a questão, o que se pode extrair é que essa parte do Diretório foi suspensa a partir desse parecer.

De qualquer maneira, todas essas disposições ficam parcialmente comprometidas com o fim do Reinado de D. José I e consequente saída do Marquês de Pombal. De fato, por Carta Régia de 1798 dirigida para o Governador do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho, se extingue o Diretório dos índios nas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Espírito Santo:

“(…) hei por bem abolir e extinguir de todo o directorio dos indios estabelecido provisionalmente para o governo economico das suas povoações para que os mesmos indios fiquem sem differença dos outros meus vassallos, sendo dirigidos e governados pelas mesmas leis que regem todos (...)”

O fim do Diretório seria progressivo para dar tempo de liquidar as contas da tesouraria que administrava as rendas e despesas das povoações indígenas.

A mesma Carta Régia estabelece um novo regulamento para as aldeias que não mais deveriam ser administradas por um Diretor, entretanto se continua o objetivo iniciado com o Diretório de integrar o índio à sociedade dos não-índios: “(...)pelo bem real que elles não menos do que o estado acharão em entrarem na sociedade e fazerem parte d'ella para participarem igualmente com os outros meus vassallos(...)”. E Recomenda ao Governador “(...)que vós sejais o instrumentos da total civilização d'esses indios, ao ponto de se confundirem as duas castas de Indios e brancos em uma so de vassallos uteis ao estado e filhos da igreja(...)”.

Mantém-se os incentivos para os casamentos entre índios e não-índios. E quanto aos índios que vivem fora da influência do Estado estabelece:

“(...) é minha real intenção pelo que toca aos que andam embrenhados nos mattos, e repugnam procurar a sociedade dos outros seus semelhantes pelos justos motivos que me a patenteaes, alterar o systema até agora seguido, e substituir-lhe outro que tenha por principio não o conquista-los e sujeita-los, mas prepara-los para admittirem communicação e tracto com os outros homens. E para este fim ordeno que não façaes nem consintaes se faça, de baixo das mais severas penas, que ficam reservadas ao meu real arbitrio, guerra offensiva ou hostilidades quaesquer a nação alguma de gentios que habitam os vastos espaços d'essa capitania. (…) e so vos será licito adoptar um systema differente d'este puramente defensivo, no caso em que alguma das mesmas nações intentem hostilidades e correrias contras as cidades, villas, e outras povoações, (...)”

Assim, limita-se o uso da guerra para apenas situações de defesa. E quanto aos índios recém trazidos para as povoações determina que os moradores tem a obrigação de educá-los e instruí-los para que esses índios possam licitamente servi-los. E ineditamente é concedido o “privilegio de orphans” para esses índios. E essa equiparação de índios à órfãos será novamente utilizada no período Imperial.

Na questão de terras, essa Carta Régia, permite a ocupação das terras indígenas, por qualquer pessoa da população: “(...) todo aquelle individuo livre que quizer estabelecer-se nas terras e povoações dos gentios lhe será concedida licença para isso, mas não poderá fazel-o sem dar parte ao governo.”

Em São Paulo continua a funcionar o Diretório e, por requerimento de Diretor de uma aldeia, é emitida ordem de 18 de setembro de 1798 mandando-se respeitar as terras dos índios de esbulhos feitos por aforamentos das terras, que segundo o diploma foram feitos por padres.

Ainda sobre esse período encontramos o Regimento de 10 de abril de 1804 dado ao então Governador Geral Fernando José de Portugal e Castro, que determina que as aldeias indígenas quando abandonadas tornavam-se devolutas, o regimento comenta que assim se fazia desde 1716. O regimento também ressalta o perigo de pessoas tomarem ilicitamente as terras indígenas alegando que estão abandonadas e assim recomenda cuidado ao tratar da matéria para evitar abusos.

Guerra em 1808

No século XIX, o Príncipe Regente, D. João VI, com os pés no Brasil, atende às queixas da capitania de “Minas Geraes” e manda, por Carta Régia de 13 de maio de 1808, fazer guerra aos índios botocudos.

Esses índios seriam antropófagos, estariam invadindo diariamente fazendas e assassinando portugueses. D. João VI manda que nessa guerra ofensiva se tome a terra dos índios, ou seja, reconhecendo implicitamente o prévio domínio dos índios sobre aquelas terras, mas, agora, manda adquiri-las através da conquista. Permite, ainda, que os prisioneiros de guerra sejam tomados cativos por 10 anos e incentiva os portugueses expulsos pelos índios a voltarem para as suas terras.

Em 5 de novembro do mesmo ano, Carta Régia semelhante é feita, porém contra os índios bugres na capitania de São Paulo. O Príncipe destaca que o único meio de civilizar os índios é submetendo-os a uma “escola severa”, e que aqueles que assim se submeterem serão protegidos pela Lei tanto na sua segurança individual quanto na propriedade de suas terras. Vê-se que a Lei condiciona a proteção dos direitos de liberdade e de propriedade do índio à sua submissão ao Estado.

Por outra Carta Régia, ainda no mesmo ano, de 2 de dezembro, é relatado qual foi o desenvolvimento da guerra com os índios botocudos. Diz a carta que finda a "tirania" dos índios botocudos os índios pacíficos serão protegidos pela Lei e será promovida a sua civilização. Diz ainda que as terras reconquistadas dos índios serão consideradas devolutas, e explica que devolutos são todos os terrenos que “dados em sesmarias anteriormente, não foram demarcados, nem cultivados até a presente época” e deve se executar sobre esses o disposto no Livro IV, título 43, das Ordenações. Aplicar esse dispositivo significa conceder essas terras em sesmarias. Essa Carta, ainda, afirma que os fazendeiros podem servir-se do trabalho do índio, gratuitamente, desde que o civilize.

Em 1 de abril de 1809, outra Carta Régia, dirige sua aplicação aos índios bugres. Aqui a intenção é civilizar os índios e não matar todos. Assim, não se deveria fazer mal ao índio pacífico e submisso. E, por fim, oferece incentivos fiscais para novos colonizadores dos “Campos de Guarapuava” na capitania de São Paulo.

Também há o Decreto de 25 de fevereiro de 1819 para o Ceará, Pernambuco e Paraíba expressando mandamentos de proteção ao índio pacífico.

Particularmente interessante é o Decreto de 26 de março de 1819, em que se anula a concessão de sesmaria por causa da existência no local de uma aldeia indígena com igreja, o que mostra de novo a importância da conversão dos índios para sua proteção.

Período Imperial

O Brasil independente é fruto das sementes plantadas por D. João VI: novos modelos de cidades, inéditas instituições de ensino superior, fortalecimento das fronteiras, unidade territorial, comércio livre, entre outros.

Quanto aos índios o novo Estado herda uma guerra declarada aos índios bugres e botocudos e herda a legislação pombalina que objetivava a integração e civilização dos índios pacíficos.

Na primeira Constituição brasileira, não há artigos sobre o tratamento jurídico dos índios e de seus bens.

Até a independência as terras eram distribuídas por sesmarias, mas em 1822 por Resolução a concessão de sesmaria é suspensa o que deixa um vazio legislativo no tema de distribuição de novas terras.

E com o fim do sistema de sesmarias não é feita nenhuma lei afirmando o direito prévio dos índios sobre esse novo sistema de posses. Assim, para o posseiro não havia diferença jurídica em se apossar de terras indígenas ou de terras devolutas.

E é apenas em 1831 que por Lei se revogam as Cartas Régias de 1808 que declararam guerra aos índios. Com o fim da guerra são libertados os índios que foram capturados e eles são equiparados à órfãos. E finalmente por Decreto em 1833 aos juízes dos órfãos é atribuída a função de administrarem os bens dos índios, mas dessa vez indistintamente, todos os índios serão tutelados e não somente os presos em guerras ou aqueles que vivem entre os não-índios. Decreto que em 15 de março de 1842 é regulamentado.

Todavia por Decreto em 1845 os índios voltam a ser administrados por diretores em todo o território nacional e o diretor volta a ser encarregado da administração do aldeamento.

Em resumo, até 1845 as terras indígenas não estavam declaradamente incorporadas aos bens estatais, mas para o uso legal desses bens os índios necessitavam de assistência ou representação, no início por religiosos e capitães e depois por diretores e juízes dos órfãos.

O Decreto de 24 de julho de 1845 contém normas dirigidas aos Diretores Gerais dos índios. Dentre as atribuições dos diretores está a da organização dos aldeamentos indígenas, inclusive no que diz respeito a sua localização e número de habitantes.

O diretor podia deslocar populações indígenas para agrupá-las em um local mais propício ou para aumentar a população de um aldeamento. Caso os índios recusassem serem deslocados seria lhes concedido usufrutos das terras que ocupassem, mas somente se a terra fosse produtiva, principalmente pela agricultura, e se os índios apresentassem bom comportamento.

A propriedade da terra apenas seria concedida ao índio depois de 12 anos de bom comportamento, nesse caso o diretor deveria proceder conforme o parágrafo 15, do artigo primeiro do Decreto:

“§15. Informar ao Governo Imperial ácerca daquelles Indios, que, por seu bom comportamento, e desenvolvimento industrial, mereção se lhes concedão terras separadas das da Aldêa para suas grangearias particulares. Estes Indios não adquirem a propriedade dessas terras, senão depois de doze annos, não interrompidos, de boa cultura, o que se mencionará com especialidade nos relatorios annuaes;e no fim delles poderão obter Carta de Sesmaria.(...)”

O Decreto é claro ao dizer que o objetivo último desse aldeamento é a catequese e civilização do índio. Portanto, a concessão de usufruto seria uma etapa no processo de aculturamento, pois, depois de 12 anos de bom comportamento lhe seria concedida a propriedade da terra usufruída.

Lei de Terras de 1850

A questão indígena na Lei de Terras já era discutida em 1912 no livro "Os Indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e políticos" de João Mendes Júnior.
   
A Lei de Terras de 1850 não revoga o Decreto de 1845, por isso as aldeias administradas por diretores continuam no regime do Decreto de 1845. A Lei de Terras irá afetar as terras dos índios que não estão aldeados.

A Elaboração da Lei de Terras começou oficialmente em 1842, no Conselho de Estado, e só foi terminar em 1850, depois de passar duas vezes pela Câmara dos Deputados e uma vez pelo Senado.

No texto aprovado é o artigo terceiro que trata das terras devolutas. Em seus parágrafos determina-se como se daria a particularização das terras devolutas: as terras que não estão excluídas são devolutas. Cada parágrafo explica uma situação distinta.

O primeiro parágrafo fala que não são devolutas aquelas aplicadas a algum uso público. As terras devolutas são públicas, porém ainda não estão aplicadas a um fim público. Elas serão destinadas a um uso público e, enquanto não se designar essa função, elas permanecem devolutas.

O segundo parágrafo, dispõe que não são terras devolutas as terras privadas, que são as sesmarias ou outras concessões do governo e as terras que estão no domínio particular por qualquer título legítimo.

O terceiro parágrafo, determina que não são terras devolutas as sesmarias e outras concessões do Governo que forem por ele revalidadas.

O quarto parágrafo, prescreve que não são terras devolutas as que estiverem ocupadas por posses. Esse parágrafo é fundamental, pois reconhece o direito dos posseiros que até então se amparavam unicamente na prática de se adquirir terras por ocupação, porque antes da Lei de Terras não havia legislação que autorizasse as posses.

Resumindo, as terras devolutas seriam: as terras que ainda não estavam sendo aplicadas a um fim público, as terras que não foram concedidas pelo governo, as que não forem revalidadas e as que não estavam ocupadas por simples posse.

Além de determinar o que é terra devoluta, a Lei prescreve que o governo deverá separar as terras devolutas das que não são.

Em todas essas disposições não há ressalva de não se considerar a posse indígena como terra devoluta.

Dentre os dispositivos da Lei, há uma única menção às terras indígenas é o artigo 12, que determina que serão reservadas das devolutas terras para a colonização do índio. Primeiro deve se destacar que o artigo 12 está planejando o futuro das terras devolutas: elas não estão desde já reservadas. O governo deve planejar onde devem se instalar colônias para os índios, da mesma forma que irá planejar a fundação de novas povoações e a abertura de estradas. A decisão do lugar onde se instalará a colônia indígena é do governo, inexistindo qualquer ressalva dizendo que essa deve ser uma decisão que respeite a vontade do índio.

Assim, se o governo quiser abrir uma nova estrada, ou uma nova povoação, ou vender terras devolutas e nelas se encontrarem índios, eles podem ser retirados do local e colonizados em outra área de escolha do governo.

De fato, quando a Lei decide que não são devolutas as terras aplicadas a um fim público e que não são devolutas as terras de particulares e de posseiros ela é muito específica. Portanto ao não especificar que as terras indígenas não são devolutas mais uma vez indica que sua vontade é que elas estejam indiscriminadas das devolutas. Ou seja, a Lei considera as terras indígenas como devolutas e o governo iria, de acordo com seu planejamento, instalar os índios, dispersos pelas terras devolutas, em colônias no local que decidir ser mais apropriado.

Além disso, se a Lei reconhecesse a propriedade ou posse do índio deveria ter destacado isso. Porque o índio é proprietário de uma maneira diferente à do não-índio. A propriedade é reconhecida à quem tem uma carta de sesmaria, ou comprou uma parte de uma sesmaria, enfim, alguém que tem um registro ou documento. Já o índio para ter algum registro ou documento de sua propriedade precisava ter alguém que o representasse, tendo em vista sua capacidade jurídica igualada a de um órfão.

Por isso, para que a Lei reconhecesse a posse do índio igualmente se necessitaria de uma ressalva, para que não se confundisse com as terras devolutas. Nesse sentido destaca-se o artigo sexto da Lei o qual explica que não são todos os tipos de posse que excluem a terra de ser considerada devoluta, assim, as ocupações que derrubam matas com queimadas, que têm roçados simples, e que têm ranchos são devolutas, e são justamente essas caracteres que são encontrados em muitas ocupações indígenas.

Consequentemente, as terras dos índios não aldeados, que viviam fora da interferência do Estado, não estavam protegidas enquanto não fossem reservadas como colônias indígenas e, portanto, estavam fora de qualquer proteção. Assim, as terras indígenas que não se encontram dentro das aldeias e colônias indígenas são, com a Lei de Terras, legalmente devolutas.

O Decreto n. 1.318 regulamenta a Lei de Terra de 1850, nenhum dos dois revoga o Decreto n. 426, logo há dois tratamentos jurídicos para as terras indígenas dependendo da origem da terra. Se a origem da terra fosse das antigas cartas de sesmarias para o aldeamento do índio, prática que se verificou no período colonial e início do Império, observar-se-ia o Decreto n. 426. Do outro lado, se a terra dos índios estivesse entre as devolutas e fosse reservada para uma colônia indígena observar-se-ia o Decreto n. 1.318.

O Decreto n. 1.318, assim, prescreve que as terras devolutas reservadas para a colonização e aldeamento de índios são destinadas ao seu usufruto e não podem ser alienadas, o Governo Imperial poderia, eventualmente, conceder a propriedade aos índios se eles já estivesse suficientemente integrados.

Assim, ambos Decretos apesar de tratarem de terras com origens diferentes utilizam-se da concessão do usufruto como etapa na integração do índio à sociedade dos não-índios.

Quanto às terras de ocupação original dos índios deve se atentar para os seguintes artigos do Decreto:

“Art. 72. Serão reservadas terras devolutas para colonisação, e aldeamento de indigenas nos districtos, onde existirem hordas selvagens.

“Art. 73. Os Inspectores e Agrimensores, tendo notícia da existencia de taes hordas nas terras devolutas, que tiverem de medir, procurarão instruir- se de seu genio e indole, do número provavel de almas, que ellas contem, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Diretor-Geral das Terras Publicas, por intermedio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessaria."

O primeiro ponto a ser destacado é que o regulamento limita o poder de deslocamento de populações indígenas. Conforme o artigo 72, as colônias e aldeias devem se localizar no mesmo distrito onde existem “hordas selvagens”. Com esse termo o regulamento está se referindo aos índios que vivem sob seus costumes e cerimônias originais e que não foram “civilizados”.

No artigo 73 fica bem expresso que as terras onde se localizam as “hordas selvagens” são devolutas, uma vez que manda que as “hordas” encontradas nas terras devolutas sejam aldeadas em um lugar apropriado. Assim, pelo regulamento fica claro que a Lei de Terras apenas reserva terras para a colonização dos índios e não excluiu da devolução as terras onde habitam “hordas selvagens”. Essas terras devem ser descobertas pelos inspetores e agrimensores para que se decidisse onde seria o melhor lugar para se criar uma colônia para eles. Desta maneira, o índio podia ter sua moradia transferida e fixada em outro local pelo governo.

Ressalta-se que o regulamento indica que as terras reservadas para a colonização dos índios não estão desde já reservadas, precisaria haver um procedimento, que consistia em uma proposta da Repartição Geral das Terras Públicas das terras devolutas a serem reservadas e depois a sua aprovação pelo governo.

Pelo regulamento, também não se pode dizer que o índio tinha título legítimo de propriedade de suas terras, pois o regulamento diz que são títulos legítimos de propriedade aqueles que são aptos para transferir o domínio. O que o Decreto reconhece ao índio é o usufruto, que não é apto para transferir a propriedade. Consequentemente não o podia fazer, igualmente, o índio que vivia em “hordas selvagens”. Logo, quando a Lei e o Decreto falam de título legítimo não estão fazendo referência à ocupação originária do índio.

Por fim, quando o regulamento dispõe sobre a venda das terras devolutas diz que da venda apenas se devem excluir as terras reservadas pelo artigo 12 da Lei de Terras e não se fala que não se devem vender terras ocupadas por “hordas selvagens”.

A Lei apenas reserva terras para a colonização do índio. Essa reserva deveria ser feita conjuntamente com o planejamento da abertura de novas estradas e novas povoações.

Desse modo, o decreto evidência que as terras de ocupação original de índios não estão equiparadas a terras destinadas a uso público, de particulares e de posseiros, e ainda que as terras indígenas não têm título apto para transferir domínio. E, finalmente, prescreve que se os índios estiverem habitando nas terras devolutas que o governo os encontre e transfira para um lugar mais propício, em colônias e aldeias.

Logo após a publicação da Lei de Terras de 1850, o Ministério dos Negócios do Império, em 21 de outubro de 1850, por meio do Aviso número 172 manda considerar como devolutas as terras dos aldeamentos abandonados. Essa ordem se justificaria quando não existissem aldeamentos e nem índios selvagens que poderiam ser aldeados. Mas o Aviso explica que mesmo se houvesse a presença de descendentes de índios espalhados pela população deveria se considerar a terra como devoluta.

Nessa decisão vê-se que os índios incorporados não fazem jus a uma proteção especial de terras, e que não mantêm as terras de seus ascendentes.

Igual resolução se toma no Aviso número 273, de 18 de dezembro de 1852, aplicando a regra para a aldeia dos índios de Arronches e Mecejan que estava extinta devendo ser considerada devoluta.

Uma vez que a terra fosse considerada devoluta as posses que ali houvessem poderiam ser legitimadas, ato que apenas um índio integrado poderia realizar.

Também cabe mencionar que em 1887 dentro das disposições da Lei orçamentária foi transferido para as províncias as terras dos aldeamentos indígenas extintos.

Um episódio ilustrativo da situação das terras indígenas no Império ocorre em 1879 na Câmara dos Deputados, Joaquim Nabuco, então deputado pela primeira vez, relata o ocorrido no seu livro “Abolicionismo”.

E de fato nas atas da Câmara dos Deputados está transcrita discussão sobre a concessão de terras do vale do Xingu. O projeto começa a ser examinado no dia primeiro de agosto de 1879, numerado projeto 193, nele se deveria aprovar o Decreto n. 6.954 de 28 de junho de 1878 que “concede a Elias José Nunes da Silva e outros privilegio de 20 annos para explorarem e extrahirem productos naturaes no valle do rio Xingú”.

O Decreto referido condicionava a concessão a algumas cláusulas, entre outras, a cláusula II, faz referência aos índios locais, sendo que os concessionário devem custear as despesas do Governo Imperial voltadas a sua civilização e catequese; e somente podem empregar os índios mediante contrato aprovado pelo responsável da catequese. Ou seja, o decreto reconhece que há índios na região, e concede a terra que originalmente ocupam para a iniciativa privada, o que somente seria possível de se fazer se a terra em questão fosse considerada devoluta, ou res nullius como Joaquim Nabuco as chama no livro “Abolicionismo”.

Lembra-se que por ser economicamente inviável a empreitada não foi bem sucedida e o Xingu permaneceu pouco explorado economicamente.

Embora o insucesso da concessão o fato de ela ter sido concedida demonstra como as terras ocupadas por índios ainda não integrados eram propriedade do Estado e consideradas terras devolutas.

Na primeira Constituição republicana em 1891 as terras devolutas passam a pertencer aos estados membros da República, onde se localizavam muitos índios. O que é coerente com o disposto no Decreto n.7 do Governo Provisório de 1889, que afirmava ser competência dos Governadores dos estados federados a catequese, civilização e estabelecimento de colônias dos índios, logo os governos estaduais poderiam mais facilmente proceder a essa incumbência tendo o domínio sobre as terras que os índios habitavam.