"DOM FILIPPE, por Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, etc. Faço saber aos que esta Lei virem, que, sendo o Senhor Rei Dom Sebastião, meu Primo, que Deus tem, informado dos modos illicitos, com que nas partes do Brazil se captivavam os Gentios dellas, e dos grandes inconvenientes, que disso resultavam, mandou, por uma Lei feita em Evora em 20 de Março do anno de 1570, que se não podessem captivar, por maneira alguma, salvo aquelles, que se fossem tomados em guerra justa, que se fizesse com sua licença, ou do Governador das ditas partes, e os que salteassem os Portuguezes e outros Gentios para os comerem; com declaração, que as pessoas, que pela dita maneira os captivassem, dentro de dous mezes primeiros seguintes, os fizessem escrever nos Livros das Provedorias das mesmas partes, para se poder saber quaes eram os que licitamente foram captivos; e não o fazendo assim, perdessem a acção de os terem por taes, e elles ficassem livres, e todos os mais, que por qualquer outro modo se captivassem. A qual Lei, El-Rei, meu Senhor, que Santa Gloria haja, houve por bem de revogar, por outra, que fez em 11 de Novembro do anno de 1595, pelas causas nella declaradas; e mandou que em nehum caso fossem captivos, salvo aquelles, que se captivassem na guerra, que, por suas Provisões particulares, assignadas por elle, mandasse que se lhes fizesse, havendo por livres aos que por qualquer outra maneira fossem captivos.
E sendo eu informado que com tudo era necessario provêr com differente remedio, mandei, por minha Provisão, passada em 5 de Junho de 1605, que em nenhum caso se podessem os ditos Gentios captivar.
E por Lei feita em 30 de Julho de 1609, os declarei a todos por livres, conforme a Direito, e seu nascimento natural, com outras declarações e cousas conteudas na dita Lei.
E tornando-a ora a mander ver, e a considerar os inconvenientes, que se representaram, conforme a importancia da materia; e querendo atalhar a elles, e aos que ao diante se podem seguir, e juntamente provêr no que mais convem ao governo dos ditos Gentios, e sua conversão á nossa Santa Fé Catholica, e á conservação da paz d'aquelle Estado, com parecer dos do meu Conselho, mandei ultimamente fazer esta Lei; pela qual, pela dita maneira, declaro todos os Gentios das ditas partes do Brazil por livres, conforme a Direito, e seu nascimento natural, assim os que forem já baptizados e reduzidos á nossa Santa Fé Catholica, como os que ainda viverem como Gentios, conforme a seus ritos e ceremonias, e que todos sejam tratados e havidos por pessoas livres, como são, sem poderem ser constrangidos a serviço, nem a cousa alguma, contra sua livre vontade; e as pessoas, que delles se servirem, lhes pagarão seu trabalho, assim e da maneira que são obrigados a pagar a todas as mais pessoas livres.
Porém, succedendo caso, que os ditos Gentios movam guerra, rebelliäo e levantamento, fará o Governador do dito Estado, Junta, com o Bispo, sendo presente, e com chanceller e Desembargadores da Relação, e todos os Prelados das Ordens, que forem presentes no logar, aonde se fizer a tal Junta, e nella se averiguará, se convem, e é necessario ao bem do Estado, fazer-se guerra ao dito Gentío, e se ella é justa; e do assento, que se tomar, se me dará conta, com relação das causas, que para isso ha, para eu as mandar ver; e approvando, que se deve fazer a guerra, se fará; e serão captivos todos os Gentios, que nella se captivarem.
E porque podera succeder, que na dilação de se esperar minha resposta e aprovação, sobre se fazer a guerra, haja perigo: hei por bom, e mando, que, havendo-o na tardança, e sendo tomado assento pela dita maneira, que se deve fazer guerra, se faça, e execute o que se assentar (dando-se-me comtudo conta do assento, como fica referido); e os Gentios, que se captivarem, se assentarão em livro, que para isso se fará, por seus proprios nomes, e logares donde são, com declaração de suas idades, signaes e circumstancias que houver em seu captiveiro; e as pessoas que os captivarem, e a que pertencerem, os terão como captivos, sendo feitas as ditas diligencias; porque não as fazendo, o não serão; e com ellas os não poderão vender, até eu ter confirmado o assento que se tomar, sobre se fazer a tal guerra; e confirmando-o eu, poderão fazer delles o que lhes bem estiver, como seus captivos, que ficarão sendo livremente; e não o confirmando, se cumprirá o que sobre isso mandar.
E porque tenho intendido que os ditos Gentios tem guerras uns com os outros, e costumam matar e comer todos os que nellas se captivam, o que não fazem, achando quem lh'os compre; desejando prover com remedio ao bem delles, e salvação de suas almas, que se deve antepôr a tudo; e considerando, como é certo, que nenhuma pessoa quererá dar por elles cousa alguma, não lhe havendo de ficar sujeitos: hei por bem, que sejam captivos todos os Gentios, que, estando presos e captivos de outros para os comerem, forem comprados,justificando os compradores delles, pelas pessoas que, conforme a esta Lei, podem ir ao Sertão com ordem do Governador, que os compraram, estando, como fica dito, presos de outros Geatios para os comerem; com declaração, que, não passando o preço, por que os taes Gentios forem comprados, da quantia que Governador com os adjunctos declarar, serão captivos sómente por tempo de dez annos, que se contarão do dia da tal compra; e passados elles, ficarão livres, e em sua liberdade; e os que forem comprados por mais, ficarão captivos, como dito é.
E pelo muito que convém á conservação dos ditos Gentios, e poderem com liberdade e segurança morar, e commerciar com os moradores das Capitanias, e para o mais, que convier a meu serviço, e beneficio das fazendas de todo aquelle Estado do Brasil, e cessarem os enganos e violencias, com que muitos eram trazidos do Sertão: hei por bem, e mando, que o Governador do dito Estado, com parecer do Chanceller da Relação delle, e Provedor-mór dos defunctos, nella façam eleição das pessoas seculares, casados, de boa vida e costumes, que lhes parecerem mais convenientes para serem Capitães das Aldêas dos ditos Gentios, e que, podendo ser, sejam de boa geração e abastados de bens, e que de nenhum modo sejam de nação; os quaes Capitães serão eleitos na quantidade de Aldêas, que se houverem de fazer, e por tempo do tres annos, e o mais que eu houver por bem, em quanto não mandar o contrario - e sendo eleitos, lhes darão ordem para irem ao Sertão persuadir aos ditos Gentios desçam abaixo, assim com boas palavras e brandura, como com promessas, sem lhes fazer força, nem molestia alguma, em caso, que não queiram vir; para o que levarão comsigo um Religioso dos da Companhia de Jesus, e não o havendo, ou nao querendo ir, levarão outro de qualquer outra Religião, ou Clerigo, que saiba a lingua, para assim os poderem melhor persuadir.
E vindo os ditos Gentios, o Governador os repartirá em povoações de até trezentos casaes, pouco mais ou menos, limitando-lhes sitio conveniente, aonde possam edificar a seu modo, tão distantes dos engenhos e matas do páu do Brazil, que não possam prejudicar a uma cousa, nem a noutra.
E assim lhes repartirá logares para nelles lavrarem e cultivarem, não sendo já aproveitados pelos Capitães, dentro no tempo, como são obrigados por suas doações; as quaes repartições fará o Governador, com parecer dos ditos Chanceller e Provedor-mór.
E os ditos Gentios serão senhores de suas fazendas nas povoações, assim como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia, ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontades das Capitanias e logares, que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quiserem fazer.
Em cada uma das ditas Aldêas haverá uma Igreja, e nella um Cura, ou Vigario, que seja Clerigo Portuguez, que saiba a lingua; e em falta delles, serão Religiosos da Companhia; e em sua falta, das outras Religiões; os quaes Curas, ou Vigarios, serão apresentados por mim, ou pelo Governador do dito Estado do Brazil, em meu nome, e confirmados pelo Bispo; e pelo dito Bispo poderão ser privados, quando das visitações resultarem contra elles culpas, por que o mereçam; e posto que os taes Vigarios e Curas sejam Regulares, ficarão subordinados ao Ordinario, no que toca a seu officio de Curas, conforme ao Sagrado Concilio Tridentino; e assim se declarará nas Cartas, que se lhes passarem.
Nas Aldêas, que se fizerem dos ditos Gentios viverão juntamente os ditos Capellães, ou Vigarios, para os confessarem, sacramentarem, ensinarem, e doutrinarem nas cousas de sua Salvação.
E assim viverão nellas os Capitães, cada um na sua, com sua mulher e familia, para os governarem em sua vivenda commua, e commercio com os moradores d'aquellas partes, assistindo muito particularmente a seu governo, e tratando de tudo o que convém, assim para cultivarem a terra, como para aprenderem as artes mechanicas; e quando forem necessarios para meu serviço, os apresentarem ao Governador, ou Capitão Geral, a que tocar; e havendo pessoas, que vão buscar gente para seu serviço, lh'a darão, pelos preços, e conforme a táxa geral, que se fizer para todo o Estado - a qual fará o Governador, com o Chanceller, e Relação delle, e lhes farão fazer bons pagamentos; aos quaes serão presentes; e não consentirão que sejam maltratados. E nem os ditos Capitães, nem os mais, a cujas Capitanias os ditos Gentios forem, e aonde estiverem, terão sobre elles mais vassallagem, poder, e jurisdição, do que por seus Regimentos, e Doações, tem sobre as mais pessoas livres, que nellas vivem; nem lhes poderão laçar tributos reaes, nem pessoas; e lançando-lhes alguns, o Governador lh'os tirará; e lhes fará logo tornar todo o que injustamente tiverem pago, fazendo-o execular assim, sem appellação, nem aggravo.
Os ditos Capitães, cada um em sua Aldêa, será Juiz das causas dos ditos Gentios, assim das que elles moverem uns contra outros, como das que moverem contra outras quasquer pessoas, ou as taes pessoas contra elles; e tratará sempre de os compôr; e terá alçadas nos casos civeis até a quantia de dez cruzados, e nos crimes até trinta dias de prisão, em que poderá condemnar, e absolver; e no que exceder dará appellação para o Ouvidor da Capitania, em cujo districto estiver a Aldêa - e o dito Ouvidor, não cabendo a causa em sua alçada, dará appellação para o Provedor-mór dos defunctos da Relação d'aquelle Estado; o qual hei por bem, que seja Juiz de todas as appellações que se tirarem das causas dos ditos Gentios, dos casos que não couberem na alçada dos ditos Capitães, e Ouvidores; e os despachará em Relação, com adjunctos, como se despacham os mais feitos.
O dito Governador, com parecer dos ditos Chanceller, e Provedor-mór dos defunctos, fará Regimento, em que se declarará o modo, e ordem, que os ditos Capitães, Curas, ou Vigarios, hão de guardar em seu governo temporal, e o que hão de haver do ordenado; que tudo ha de ser pago á custa dos Gentios, e não da minha Fazenda: o qual Regimento se fará, tanto que esta chegar áquellas partes; e se me enviará logo, para eu o mandar vêr, e confirmar, se me parecer: e entretanto que não fôr a determinação, que sobre isso tomar, se usará delle.
E por quanto sou informado, que, em tempo de alguns Governadores passados d'aquelle Estado se captivaram muitos Gentios, contra a fórma das Leis d'El-Rei, meu Senhor e Pai, e do Senhor Rei Dom Sebastião, meu Primo, que Deus tem, e principalmente nas terras de Jaguaribe - hei por bem, e mando, que, assim os ditos Gentios, como outros quaesquer, que, até a publicação desta Lei, forem captivos, sejam todos livres, e postos em sua liberdade; e se tirem do poder de quaesquer pessoas, em cujo poder estiverem, sem replica, nem dilação, nem serem ouvidos com embargos, nem acção alguma, do qualquer qualidade, e materia qua sejam; e sem se lhes admittir appellação, nem aggravo, posto que alleguem estarem delles de posse, e que os compraram, e por sentenças lhes foram julgados por captivos: por quanto por esta declaro as ditas vendas, e sentenças, por nullas; ficando resguardada sua justiça aos compradores, contra os que lh'os venderam: e dos ditos Gentios se farão tambem as Aldêas, que forem necessarias; e assim nellas, como nas mais, que já houver, e e estão domesticas, se terá a mesma ordem e govemo que por esta se ordena haja, nas mais que de novo se fizerem.
Hei por bem, que todas as pessoas, de qualquer qualidade e condição que sejam, que contra a fórma desta Lei trouxerem Gentios da Serra, ou se servirem delles como captivos, ou os venderem, incorram nas penas, que por Direito commum, e minhas Ordenações, incorrem os que captivam , e vendem pessoas livres: e para se saber se assim o cumprem, e como os ditos Capitães o fazem na obrigação de seus cargos, mandará o dito Governador todos os annos tirar devassa por um Desembargador, ou pelos Ouvidores das Capitanias, que lhe parecer, e assim dos ditos Capitães, como das mais pessoas, que forem contra o que por esta mando; e as devassas, depois de tiradas, serão levadas á Relação; na qual se procederá contra os culpados, breve e summariamente, sem mais ordem ou figura de Juizo, que o que fôr necessario para se saber a verdade; e os feitos se despacharão nella, como fôr justiça.
E por esta revogo todas as ditas Leis, e Provisões atraz declaradas, e todas e quaesquer outras Leis, Provisões, e Regimentos, que atégora são feitas, e passadas por mim, e pelos Reis, meus antecessores, sobre a liberdade dos ditos Gentios do Estado do Brazil, e seu governo; e esta sómente quero, que tenha força, e vigor, e se cumpra e guarde inviolavelmente, sem se lhe poder dar declaração, ou interpretação alguma, por assim ser minha tenção, e vontade.
E mando ao Governador do dito Estado do Brazil, e aos das tres Capitanias de S. Vicente, Espirito Santo, e Rio de Janeiro, que ora säo, e ao diante forem, e ao Regedor da Casa da Supplicação, e Governador da Casa do Porto, e a todos os Desembargadores das ditas Relações, e da do dito Estado do Brazil, e Capitães delle, e a todas as mais minhas Justiças e Officiaes, e pessoas, a que pertencer, cumpram, e façam inteiramente cumprir esta minha Lei, e a dêm, e façam dar á sua devida execução, como nella se contém; a qual se registará no meu Conselho da India, e terras ultramarinas, e nas ditas Relações, nos livros, aonde semelhantes Leis se costumam registar; e assim se registará nos livros das Provedorias e Camaras das Capitanias do dito Estado do Brazil; e ao Chancellér-mór de meus Reinos mando outrosim a faça publicar na Chancellaria, e imprimir, para se enviar ao dito Estado, e lá se publicar, e cumprir, e por ella se fazer o dito registo: a qual se enviará outrosim ao Sertão, e terras aonde os ditos Gentios morarem, para vir à noticia de todos; e se cumprirá esta outrosim, sem embargo da Ordenação do liv.2 tit. 44, que diz se não intenda ser derogada Ordenação alguma, se della se não fizer expressa menção.
Simão Luiz a fez, em Lisboa, a 10 de Setembro. Anno do Nascimento de Nosso Senhor
Jesus Christo de 1611. E eu o Secretario Antonio Viles de Simas a fiz escrever.= ELREI."
Referência: Beatriz Perrone-Moisés, "Inventário da Legislação Indigenista 1500-1800", in Manuela Carneiro da Cunha (org.), "História dos Índios no Brasil", São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Fonte: SILVA, José Justino de Andrade e, "Collecção Chronologica da Legislação Portugueza - 1603-1612", Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 309-312.
Transcrito por Rodrigo Sérgio Meirelles Marchini.
Para confrontar a transcrição com a fonte clique aqui, do antigo site ius lusitaniae.