Lei de 30 de Julho de 1609

  
"Eu EL-REI Faço saber aos que esta Lei virem, que, sendo o Senhor Rei Dom Sebastião, meu Primo, que Deus tem, informado dos modos illicitos com que nas partes do Brazil se captivavam os gentios, e dos grandes inconvenientes que disso resultavam, defendeu por uma Lei, que fez em Evora a 20 de março de 1570, os ditos modos illicitos, e mandou que, por modo, nem maneira alguma, os podessem captivar, salvo aquelles, que fossem tomados em justa guerra, que se fizesse com sua licença, ou do Governador das ditas partes; e os que salteassem os portuguezes e a outros gentios, para os comerem; - com declaração, que as pessoas, que pelas ditas maneiras os captivassem, dentro de dous mezes primeiros seguintes, os fizessem escrever nos livros das Prevedorias das ditas partes, para se poder saber quaes eram os que licitamente foram captivos; e não os fazendo escrever dentro no tempo dos ditos dous mezes, perdessem a acção de os terem por captivos, e os gentios ficassem livres, e todos os mais, que por qualquer modo se captivassem.
E El-Rei Meu Senhor, que Santa Glória haja, por atalhar os meios paleados, de que os moradores do Brazil usavam, para, com pretexto de justa guerra, os captivarem, houve por bem de revogar a dita Lei, por outra, que fez em 11 de Novembro do anno de 1595, pela qual mandou que em nenhum caso os ditos gentios fossem captivos, salvo aquelles, que se captivassem na guerra, que por Provisões particulares, por elle assignadas, mandasse que se lhes fizesse; e os que por qualquer outra maneira fossem captivos os havia tambem por livres; e que como taes não podessem ser constrangidos a cousa alguma, como mais largamente se contém nas ditas Leis.
E por quanto fui informado, que, sem embargo das declarações da dita Lei, não cessavam grandes inconvenientes, contra o serviço de Deus, e meu, e consciencia dos que assim os captivavam, com grande perda das fazendas d'aquelle Estado; mandei, por uma Provisão de 5 de junho de 1605, que em nenhum caso se podessem os ditos gentios captivar; porque, posto que por algumas razões justas de direito se possa em alguns casos introduzir o dito captiveiro, são de tanto maior consideração as que há em contrario, principalmente pelo que toca á conversão dos gentios á nossa Santa Fé Catholica, que se devem antepôr a todas as mais; e assim pelo que convém ao bom governo, e conservação da paz daquelle Estado.
E para se atalharem os grandes excessos, que poderá haver, se o dito captiveiro em algum caso se permitir, para de todo se cerrar a porta a isto, com o parecer dos do meu Conselho, mandei fazer esta Lei, pela qual declaro todos os gentios d'aquellas partes do Brazil por livres, conforme a Direito, e seu nascimento natural, assim os que já forem baptizados, e reduzidos á nossa Santa Fé Catholica, como os que ainda viverem como gentios, conforme a seus ritos, e ceremonias; os quaes todos serão tratados, e havidos por pessoas livres, como são; e não serão constrangidos a serviço, nem a cousa alguma, contra sua livre vontade; e as pessoas, que delles se servirem nas suas fazendas, lhes pagarão seu trabalho, assim, e de maneira, que são obrigados a pagar a todas as mais pessoas livres, de que se servem.
E pelo muito que, convém á conservação dos ditos gentios, e para poderem, com liberdade e segurança. morar e commerciar com os moradores das Captanias, e para o mais, que convier a meu serviço, e beneficio das fazendas de todo aquelle Estado, e cessem de todos os enganos, e violencias, com que os Capitães, e moradores, os traziam do Sertão; pelo que convém ao serviço de Deus, e meu, e por outros justos respeitos, que a isso me movem:
Hei por bem, que os Religiosos da Companhia de Jesus, que ora estão nas ditas partes, ou ao diante a ellas forem, possam ir ao Sertão, pelos muitos conhecimentos e exercicio, que desta materia tem, e pelo credito, e confiança, que os gentios delles fazem, para os domesticarem, e assegurarem em sua liberdade, e os encaminharem no que convém ao mesmo gentio, assim nas cousas de sua salvação, como na vivenda commua, e commercio com os mercadores daquellas partes.
Hei por bem, que os ditos gentios sejam senhores das suas fazendas, nas povoações em que morarem, como o são na serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia, nem injustiça alguma.
E o Governador, com o parecer do ditos Religiosos, aos que vierem da serra assignará logares, para nelles lavrarem, e cultivarem, não sendo já aproveitados pelos Capitães, dentro no tempo, como por suas doações são obrigados; e das Capitanias, e logares, que lhes forem ordenados, não poderão ser madados para outros contra sua vontade (salvo quando elles livremente o quizerem fazer.
E hei por bem, que nas povoações, em que estiverem, nonde não houver Ouvidor dos Capitães, o Governador, lhes ordene um Juiz particular, que seja portuguez, christão velho, de satisfação, o qual conhecerá das causas, que o gentio tiver com os mercadores, ou os mercadores com elle.
E terá de alçada no civel até dez cruzados, e no crime até 30 dias de prisão, não sendo delicto, que mereça maior castigo; porque se o merecer, em tal caso correrá o livramento pelas Justiças Ordinárias; e assim ordenará uma pessoa de confiança, christão velho, para que com ordem dos ditos Religiosos possa requerer o que fôr devido aos ditos gentios; e na execução do que liquidamente se lhes dever de seu serviço, se procederá sumariamente, conforme a minhas Ordenações; aos quaes se fará o favor, que a Justiça permittir.
O que tudo é conforme ao que El-Rei, meu Senhor e Pai, mandou, por uma sua Provisão, feita em 26 de Julho de 1596, como mais largamente nella se contém.
E em quanto nas ditas povoações estiverem os ditos Religiosos da Companhia, os terão a seu cargo, assim no que coavém ao espiritual da doutrina christã, como ao que, para, quando forem necessarios para meo serviço, os apresentar ao Governador, ou Capitão Geral, a que tocar; e para as pessoas que delles se houverem de servir, em suas fazendas, os acharem com mais facilidade.
E quando os ditos Religiosos delles se servirem, tambem serão obrigados da mesma maneira pagar-lhes seu trabalho, como pagam os mais moradores d'aquellas partes; e em quanto os ditos gentios estiverem nas povoações de qualquer Capitanias, os Capitães não terão sobre elles mais vassallagem, poder, nem jurisdicção, do que, por seu Regimento e doações, tem sobre as mais pessoas livres, que nellas moram; e não lhes poderão lançar tributos reaes, nem pessoaes; e os tributos, que lhes forem lançados, o Governador lh'os tirará, e lhes fará tornar logo o que tiverem injustamente pago: o que executará, sem appelação, nem agravo.
E porque sou informado, que em tempo de alguns Governadores passados se captivaram muitos gentios, contra a fórma das Leis de El-Rei, meu Senhor e Pai, e do Senhor Rei Dom Sebastião, meu Primo, que Deus tem, principalmente nas terras de Jurgaribe: hei por bem, e mando, que todos sejam postos em sua liberdade; e que se tirem logo do poder de quasquer pessoas, em cujo poder estiverem, e os mandem para suas terras, sem embargo de os que delles estiverem de posse dizerem, que os compraram, e que por captivos lhes foram julgados por sentenças - as quaes vendas e sentenças declaro por nullas, por serem contra Direito, ficando resguardado aos compradores o que pertenderem, contra os que lh'es venderam.
E mando ao Governador do Estado do Brazil e aos das tres Capitanias de S. Vicente, Porto Santo, e Rio de Janeiro, o cumpram, e executem, sem appellação, nem aggravo, sem admittirem embargos de qualquer qualidade que sejam; e os que contra fórma desta Lei trouxerem gentios da serra, ou se servivrem delles, como captivos, ou os venderem, incorrerão nas penas, que por Direito commum, e Ordenações, incorrem os que captivam e vendem pessoas livres: e por esta revogo todas as Leis, Regimentos, e Provisões, que até agora são feitas, e passadas por mim, e pelos Reis meus antecessores, sobre a liberdade dos gentios do Estado do Brazil.
E esta hei por bem, e mando, que somente tenha força e vigor, e se guarde inviolavelmente, sem se poder dar declaração, nem limitação, á minha vontade, que por ella declaro.
O Chancellér da Relação, que ora vai ao Brazil, e no diante fôr, tirará todos os annos devassa dos que fizerem o contrario do que por esta Lei mando; e procederá contra os culpados breve e summariamente, sem mais ordem nem figura de Juizo que a que fôr necessaria para saber a verdade; e os despachará em Relação, como fôr justiça, conforme a seu Regimento.
E mando ao Regedor da Casa da Supplicação, ao Governador da Casa do Porto, e aos Governadores, que ora são, e ao diante forem do dito Estado e partes do Brazil, e a todos os Desembargadores de ambas as Relações, e da do Brazil, guardem inteiramente esta Lei, e sem declaração, nem interpretação alguma, e a dêem á sua devida execução; e ao Chancellér-mor de meus Reinos a mande publicar na Chancellaria, e envie, sob meu sello, e seu signal, aos Governadores do Brazil, e a todos os Capitães das Capitanias das ditas partes; e que se registe nos Livros do Desembargo do Paço, e de ambas as Relações, aonde semelhantes Leis, e Ordenações se costumam registar; e assim se registará nos Livros da Relação do do Brazil, e em todos os das Provedorias, e Capitanias daquelle Estado; e se enviará ao Sertão, e terras, aonde os ditos gentios moram, par vir á noticia de todos, e como os hei, e declaro a todos livres, e senhores de suas fazendas, para com mais facilidade poderem commerciar nas ditas Capitanias.
Antonio de Almeida a fez, em Madrid, a 30 de Julho de 1609. Francisco Pereira de Bitancur a fez escrever. = REI."

Referência: Beatriz Perrone-Moisés, "Inventário da Legislação Indigenista 1500-1800", in Manuela Carneiro da Cunha (org.), "História dos Índios no Brasil", São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Fonte: SILVA, José Justino de Andrade e, "Collecção Chronologica da Legislação Portugueza - 1603-1612", Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 271-273.
Transcrito por Rodrigo Sérgio Meirelles Marchini.
Para confrontar a transcrição com a fonte clique aqui, do antigo site ius lusitaniae.